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23 novembro 2009

O estigma da cadeira de rodas



É desta vez uma história real..., em que muitos me perguntam o que penso, como cadeirante, sobre a novela “Viver a vida” e, já pelo título, imagino que viver a vida seja pleno, independentemente do que se possa ter por deficiências morais, materiais, comportamentais, espirituais e físicas, além de outras que a nomenclatura alcance ou não as declare.

Gostaria muito de ver derrubado o estigma da cadeira de rodas para que fosse minimizado tanto quanto um par de óculos, pois ambos em suas finalidades são aparelhamentos que suprem a deficiência, para o que existem.

Ora, sem óculos eu não consigo enxergar tanto quanto sem a cadeira de rodas eu não consigo andar.

Estava, em 1980, com trinta anos de idade, no auge de minha vida profissional, emocional e acadêmica. Tinha uma filha linda e saudável, com dez meses de idade, e um marido apaixonante e apaixonado. A vida era arco íris pleno sem o ocultar do sol, quando sofri acidente automobilístico, num táxi, que quase me levou a “viver a morte”, pois houve secção medular completa, quebra da coluna e de vértebras, perfuramento de pleura e pulmões, com conseqüente hemorragia interna.

Em coma absoluto passeei pelo etéreo, sim, com plena certeza e convicção, atrás de uma autorização para permanecer em terra e me lembro muito bem que o meu vínculo maior era com minha filha e a minha ligação maior era com Deus e o meu maior lastro era o pedido, com fé, em que o argumento único era “Pai se me permitiste ter uma filha, permita-me completar a missão e criá-la, pois tudo o que se começa se termina”. O amor e a fé prevaleceram e eis me aqui até hoje, com uma cadeira de rodas que também é de rosas, tal o perfume de liberdade que exala todos os minutos da minha vida me permitindo andar.

A minha alegria por estar viva, quando voltei a mim, era do tamanho do agradecimento que eu fazia a Deus, por assim me permitir regressar.

Nada, absolutamente nada, deixou de ser, por nós e por mim vivido, durante esses trinta anos. Ao sair do hospital o médico me alertou de que as inervações uterinas não haviam se afetado e que eu poderia engravidar novamente.

Chequei em casa e ali estavam todas as pessoas queridas de minha vida, mãe, pai, irmã, cunhado, filha, marido, sogra, amigos, parentes e nossa funcionária, uma das importantes sustentações da casa, que cuidava de minha filha, enquanto eu trabalhava fora.

Todos, aflitos, queriam saber como ajudar. Olhei ao redor, ainda em fase de adaptação à cadeira, pois o corpo não a reconhece de pronto, e respondi. Não sei ainda como poderão me ajudar. Acredito que cada um, hoje, deva voltar para a sua casa. Eu preciso saber o que é paraplegia, no meu dia a dia, para depois poder saber o que vou precisar.

Meu primeiro ato reflexo foi o de rever minha escala de valores e alterar os itens na sua ordem de prioridades e assim fui seguindo, primeiro contratamos alguém pra me ajudar a tomar banho e me vestir, pois saí do hospital após 45 dias de nova vida, depois um motorista, que permaneceu exatos três dias, e por fim uma secretária que passou a me ajudar com o que eu precisava adaptar e aprender para poder tomar meu banho e me vestir. Essa mesma secretária se transformou em preciosa e querida amiga, passando à única pessoa que me auxiliava e também dirigia nosso carro, para que pudesse prosseguir em minhas atividades e cuidar das atividades de minha filha.

Quando ela precisou sair do emprego, um ano após o acidente, readaptei minha carta de motorista, comprei meu próprio veículo, escondida de meu marido, e quando ele se deu por si já estava indo buscar, comigo, a “Caravan” adaptada e, de posse da carteira de motorista, fui dirigindo para Bertioga, local comum de nossas férias por muitos anos.

Assim cheguei à conclusão, nesta vida, que o estigma da cadeira de rodas vem pelo desconhecimento que se tem dela, em sua finalidade, e as pessoas, que não estão vivendo a situação, sentem medo, muito medo, desse desconhecido que ela representa como instrumental e sofrem, e sentem pena, e se fragilizam, quando aquele que nela está sentado, via de regra de bem com a vida, só tem a agradecer a possibilidade de continuar a andar, de dançar se quiser, de caminhar em trilhas na mata, de guardá-la no carro, e dirigir seu veículo adaptado como extensão dessa própria cadeira.

Cabe dizer que quando se deita pra dormir, a cadeira não vai pra cama, fica ao lado, e o corpo que todos imaginam morto responde por outras formas, e se a paraplegia resulta do espatifar o físico, por certo não arrebenta as emoções, a capacidade de amor, a dinâmica, os conhecimentos, tudo aquilo que se adquiriu e que se prossegue aperfeiçoando.

Salvo, pois, ao que parece, acidente em que o cérebro seja afetado, o poder da vontade, da fé, do positivismo, do pintar a vida em nossa tela mental, da forma como a queremos viver, respeitando as possibilidades, é o único e abençoado caminho iluminado e pleno de felicidade.

A cadeira parece ser restrição para quem a vê antes da pessoa que a utiliza, mas é condição para quem está nela conseguir chegar aonde bem quiser e muitas vezes até onde está aquele que não a consegue, assim, ver, perceber ou sentir, porque se bloqueou.

Bem, por último, eu não poderia deixar de contar que, sete anos após o acidente, tivemos outro filho, um menino, pois nossa vida conjugal não se interrompeu em momento algum e nossa expressão de amor perdura até hoje, de maneira modificada, porque em 1997 meu marido mudou-se para a pátria original.

Meus filhos hoje estão com 30 anos e 23 anos, respectivamente, e se declaram muito felizes.

Assim, a mensagem que a novela, poderá passar para todo o Brasil e, quiçá, o mundo, entre outras, é a descaracterização da cadeira de rodas como estigma de flagelo físico, pessoal e social, quando, na verdade, representa a ampla possibilidade de continuar a “viver a vida”.

Criado e postado, em 22/11/2009, por:
Márcia Fernandes Vilarinho Lopes

4 comentários:

  1. Moça!!!
    Excelente texto!
    É a isso que chamo de cunho social.
    Oxalá muitos o leiam, e que esse cunho social seja bem abordado na novela VIVER A VIDA, cujo nome já é bem sugestivo nessa temática.
    Se bem explorado, com certeza, o caso da Luciana vai nos render algum respeito, pois a vida é cíclica: hoje somos nós, amanhã muitos outros ocuparão os nossos lugares.
    E a vida continua...
    Somos parte, embora, às vezes, sintamo-nos à parte, à deriva.
    A audiência da novela é muito grande, o que significará muito aprendizado, muita informação, capazes de aliviar esse estigma tão grande que nos rotula.
    Junto-me a vc nessa defesa.
    Não é por acaso que vc tem voz, preparo, talento, e, uma cadeira para deambular, podendo falar de cátedra!
    Parabéns, amiga querida!
    Beijo grandão da
    Genaura Tormin

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  2. Oi Márcia...
    Visitando aqui o seu espaço pela primeira vez... apreciando seus textos e dando uma espiada em toda a sua criação.
    Parabéns pelo blog minha amiga.
    Voltarei mais vezes.
    Abraços*
    Espero você lá na Academia da Poesia: http://academiadapoesia.blogspot.com

    Renato Baptista

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  3. Querida Márcia,
    Não me canso de recebê-la em meus blogues. Hoje pude vir aqui e ver a gracinha da gentileza da chamada que faz a meus blogues aí ao lado. É para pessoas como você que escrevo.
    Mas conheci há dias um blogue novo:"Pesponteando: retalhos literários". Tudo muito bom ali. Mas um artigo me chamou a atenção e resolvi convidá-la a ir lá, se é que já não o conhece. Eu não conhecia.
    http://pesponteando.blogspot.com/2010/05/vivendo-relatividade-nocoes-de-uma-vida.html

    Um grande e apertado abraço,
    Eliane F.C.Lima

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  4. Obrigada,
    Por tão sábias palavras...

    Karina Patricia

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