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01 outubro 2009

O primeiro retorno










Quando me dei conta havia retornado ao corpo e ninguém precisou me dizer que não andaria mais, pois não sentia minhas pernas e sabia, conscientemente eu sabia, a alegria que me invadia era o fato de estar viva e essa era, até então, a grande primeira conquista.

Ao receber, de repente e surpreendentemente, a carta de alforria que me permitiria sair da UTI, um grande e querido amigo, irmão daqueles que a vida engravida e nos dá de presente, que do lado de lá da porta de vidro, finalmente iria conseguir entrar para me visitar, soube que assim o faria já no quarto, pois terminara minha estadia no choque, ou UTI, ou "meio cá e meio lá" no etéreo. Era verdade, eu vivia, e ele, num gesto rápido, conseguiu o maior buquê de rosas vermelhas que até então eu vira e quando a maca saiu triunfante, daquele espaço de revitalização e morte, me vi surpreendida pela dupla beleza das flores orvalhadas pelas gotas daquela terna amizade, a me receberem em nome da perfeita beleza da natureza e humana acopladas como deve ser.

Talvez tenha lido no ar, na energia, na empatia, a sede que eu tinha e que sentia por respirar o ar lá fora, mundo terreno, natureza, pessoas, burburinho, entorno, rodas, maca, destino vida.

Meu amigo, tão especial, foi a minha amiga irmã casada com você que, em outra oportunidade, como se eu fosse criança, me ajudou a jantar, após uma das anestesias do “sei lá pra que que foi”, em homenagem ao mais perfeito “português”.

Aí vocês realmente mudaram de casa, saíram do meu coração onde residiam e vieram morar na minha alma, eternamente.

Foi esse um dos momentos mágicos em que revi, feliz, o rosto firme de minha mãe e norte, mãe e norte, então, da minha filha também, meu pai, querido pai, minha irmã tão dedicada a tudo e a todos nós, meu cunhado com seu incrível texto-cartaz, minhas amigas de infância e da Faculdade, minha amiga especial psicóloga, por fim, meu marido, em porto de emoção maior, além de cada um dos amigos, companheiros de trabalho e parentes, por quem me senti aconchegada em manta de carinho, a suavizar a dor do corpo, onde os ossos não queriam sorrir de jeito algum, pelo menos naquele momento, não.

Faltava, alguém, faltava, eu queria muito abraçá-la e beijá-la, filha, e a direção do Hospital permitiu.

Seu pai foi "buscar você" e pedi que trouxesse também a sua comida, precisava alimentá-la, precisava interagir, precisava retomar a maternidade, a ligação, o elo, e quando você entrou por aquela porta, dando já pequenos passos, vestida de beleza, de mãos dadas com seu pai, você estava tão diferente de como a havia deixado há 45 dias, e a coloquei, com quase um ano de idade, sobre meu colo e brinquei e rimos e lhe dei o jantar, contando historinhas como fazia sempre, até que a emoção tomou conta do espaço externo e interno que havia em mim e então pedi para que vocês saíssem, para não explodir em mar.

A noite se fez, as pessoas se foram, de maneira diferente do que até então, esperançosas e serenas pela grande troca de energias, orações, afeto, vibrações e fé, em que a locomotiva da vida havia retornado à estação de espera.

Ficamos, filha, seu pai e eu. Ali redefinimos nosso pacto de amor e compromisso, pois as pernas haviam quedado inertes, mas os braços não, portanto cada qual com um dos remos a tocar para frente o nosso pequeno grande barco.E quando ele me abraçou, olhando para a quina da parede bege, sete anos antes, tenho certeza, meu filho que o vi, sorrindo e pleno de contentamento esparramando vida, sorrateiramente em corpo de luz, futura fagulha forjada no além, onde acredito recém havíamos nos encontrado.

Os olhos se fecharam, então, depois de muito tempo, enfim dormia, tendo ao lado o marido sofrido, resgatado em amor. Assim a vida, finalmente, reacenderia, a seguir, a luz, em novo dia.

Márcia Vilarinho
30-09-2009

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ai, como sou chorona!
    Debulho-me em lágrimas e me vejo em vc, querida!
    Tudo tão parecido!
    Que barra!
    Somos guerreiras de nós mesmas,
    e esse momento que vc descreveu é único,
    em que os limites são
    extrapolados até o nível do insuportável.
    Meu Deus, e agora eu volto no tempo...
    Gosto da sua escrita, do seu coração,
    da sua sensibilidade grafadas aqui
    em letras de dor,
    mas também de muita valentia!
    Parabéns, amiga querida.
    Já postei o meu livro
    PÁSSARO SEM ASAS para vc, viu!
    Beijo grandão.

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  3. Qualquer comentário vai ser minúsculo comparado ao que você escreveu. Nestas horas, o silêcio é o melhor elogio.

    bjos!

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