Momentos
I – A véspera
Não é sempre que conseguimos grandes vitórias nos embates da vida, mas, nós, de verdade, conseguimos.
No dia anterior nos abraçamos logo ao raiar do dia e foi tanto amor que o sol se ofuscou enciumado.
No dia da véspera, um domingo lindo, juntos corremos pra completar as tarefas de casa em que um casal, com um bebê de dez meses, uma linda menininha, sabe bem o quanto precisa correr, se quiser sair, logo após o almoço.
Arruma a casa, o almoço, o banho da pequena criatura, a roupa mais bonita escolhida a dedo, vestidinho vermelho com xadrez bem pequenininho e sapatinho a combinar, a sacola, fraldas descartáveis, fraldas de pano, uma toalha, sabonete, mamadeiras, sopinha da janta, fruta, roupinha, agasalho, e também o bebê conforto acoplado ao carrinho, pra que o nosso bebezinho, possa estar bem confortável.
E enquanto você se arruma o outro cuida de entreter a menininha que não para quietinha em lugar nenhum. Que linda! Bate palminha e ri a gargalhar com a festa de brincar que lhe faz o pai. Inesquecível cena!
Desde o amanhecer há música na “vitrola”.
E aí é a sua vez, você está recendendo ao melhor perfume, em sua roupa nova, cheia de charme, nos píncaros de seus sapatos altos e seu cabelo absolutamente esvoçoante e lindo, quando após o suquinho, a meninha resolve devolvê-lo inteirinho sobre você.
Aí você se troca e passa do charme e do esvoaçante ao casual, numa pantalona simples, uma blusa longa, um lenço lateral, uma sandália franciscana e desencana e vai, tão feliz, tão sem igual.
Feliz por uma noitada boa. Alegre por um dia bem vindo, trazendo no corpo a tatuagem do amor e no colo a realização feita criança, filha.
Enfim no carro, vamos à festa e os sorrisos e a alegria no encontro dos grandes amigos, e depois no aniversário de gente que espera a sua chegada pra completar mais um ano de vida.
Não me esquecerei daquele dia nove de novembro, daquele tão especial aniversário. Eu sempre amei aniversário dos outros, porque o meu como cai em feriado sempre aproveitei pra viajar, aliás, lembrem-se, dia vinte e um de abril.
As crianças pequenas, primas que nasceram semi juntas, uma num dia outra no outro. Uma trabalheira danada, mas finalmente quando você chega em casa, cansada, estourada, e vê a filhotinha dormindo como anjo, fica a olhar devagarinho descobrindo cada pedacinho do corpo casa que você e o outro construíram com a argamassa do amor.
Noite alta, semi luz, que acode o sono de mansinho, abraçados, encaracolados, no pedaço dividido de uma cama de casal, tão grande abrigo.
E, de repente, soa o despertador e a São Silvestre começa, novo dia, mesmo horário, mesma pressa, um beijo semi acordado e um lampejo reprimido fazem da tônica o dia.
Cadê meus óculos, onde coloquei os meus sapatos? Vou chegar atrasada. E a Dona Wanda que não chega. Acorda! Vem me ajudar. Preciso sair. Você vai me levar?
Um carro só e a Dona Wanda chegou, você me levou e eu nunca mais voltei.
No retorno, no entorno da vida, o acidente pavoroso me levou a capacidade de andar, mas não a de ser companheira, e quem retornou já não fui mais eu, era outra que aprendia, de repente, todo dia, uma nova e inesquecível lição, da vida vivida e daquela vida nova.
Sobrevivi a mim mesma e quando essa outra, que hoje sou eu, chegou e viu aquele pequeno ser a sorrir e a dizer “mamãe”, se fez forte eternamente.
Sobrevivi a mim mesma, quando observei que a casa havia sido transformada em passagem possível pra minha cadeira de rodas, e a Dona Wanda, sorrateira, disse: Ele sentou-se na sua cadeira pra arrumar todo o espaço e indefinidamente eu me fiz cativa daquela fala, daquele momento especial que me fez novamente inteira.
E nesse dia em homenagem a ele eu me levantei etérea...e assim seguimos ora sentados juntos numa mesma cadeira, ora abraçados juntos como se um apenas no colo do outro andasse.
E a véspera se fez saudade indefinidamente...